Canção para ninar menino grande entrou na minha vida por um gesto simples: meu namorado perguntou o que eu queria ler, fui olhar minha wishlist, vi Conceição Evaristo e disse o nome do livro quase sem pensar. ele disse “posso te dar?”. deixei. parece detalhe, mas não é. Alguns livros chegam pela mão de alguém e isso muda o modo como você os atravessa. Comecei devagar, meio cansada, meio perdida na rotina. Ia lendo quando dava, sem método, sem disciplina. Até que uma frase no início da obra me parou inteira.
“A escrita me deixa em profundo estado de desesperação, pois a letra não agarra tudo o que o corpo diz.”
Essa frase me desmontou não só porque é bela, mas porque é verdadeira de um jeito que dá vergonha. Ela captura algo que sempre me perseguiu: essa sensação de que escrever é tentar segurar água com as mãos. Sempre há um excesso que escapa, uma vibração que não se traduz, um pedaço de mundo interno que morre ao encostar no papel. Evaristo, porém, não trata esse ~fracasso como falha, ela o assume como método. Sua escrita acontece justamente no intervalo entre o que o corpo sente e o que a letra permite. É por isso que esse livro pulsa, ele não tenta domesticar o indizível; ele escreve a partir do que não cabe. O texto não quer caber na linguagem, quer vazar dela. E é nesse vazamento que a literatura vira corpo. Corpo ferido, corpo lembrante, corpo que sabe mais do que pode dizer. Tudo ali se sustenta nessa pulsação que não se resolve, nessa teimosia de escrever apesar do limite, nesse cansaço que também é coragem. E talvez seja por isso que, desde essa primeira frase, eu entendi que não estava apenas lendo um livro — estava entrando num organismo vivo.
E o que mais me fascina é que canção não é apenas a história de um homem morto: é a história das mulheres que sobreviveram a ele. Fio jasmim, esse “menino grande” impossível de carregar (nem pela mãe, nem pelas amantes, nem por si mesmo) existe menos como sujeito e mais como rastro. Ele é um buraco com forma de homem, moldado pela herança da masculinidade negra que aprendeu a engolir a própria fragilidade para performar força. Como lembra Wanderson Barbosa, no ensaio da missangas, fio não é uma falha individual, mas o produto histórico de uma repressão afetiva, da cobrança de virilidade, da expectativa cruel de que o homem negro seja sempre o corpo potente, nunca o corpo vulnerável. Isso não o absolve, mas o contextualiza: ele é sintoma de algo maior. Evaristo sabe disso. Ela escreve esse homem como se descrevesse um metal em fusão. Lindo, perigoso, impossível de segurar nas mãos sem se queimar.
Só que a grandeza do livro não está nele. Está nelas. Evaristo faz o que poucas narrativas ousam: entrega o protagonismo à constelação de mulheres que cercam Fio Jasmim, cada uma trazendo seu pedaço de dor, de amor, de luto, de ironia, de memória. quando li outras resenhas — como a da Jennifer Ernesto — entendi melhor essa força: Jennifer descreve essas vozes como “uma confraria de mulheres contando seus causos de amor por ele”, e não há imagem mais justa. É um coro, um mosaico, uma costura coletiva. É ali que a identidade de Fio realmente se forma, não porque elas falam dele, mas porque elas revelam o que a sociedade faz com homens como ele e, principalmente, o que esses homens fazem com mulheres como elas. É a memória feminina que sustenta a narrativa, mas também que desmonta o mito da passividade. Como lembram estudiosas do feminismo negro, essas mulheres não são vítimas imóveis: elas articulam amor, exigem espaço, negociam a própria dor como quem negocia território. Fazem escolhas difíceis, às vezes doloridas demais, mas ainda assim conscientes. Há poder nesses gestos, mesmo quando o amor é o próprio veneno.


