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Quintal de Neblina

23 de novembro de 2025

As mulheres que sustentam Fio Jasmim: sobre Canção para Ninar Menino Grande

Canção para ninar menino grande entrou na minha vida por um gesto simples: meu namorado perguntou o que eu queria ler, fui olhar minha wishlist, vi Conceição Evaristo e disse o nome do livro quase sem pensar. ele disse “posso te dar?”. deixei. parece detalhe, mas não é. Alguns livros chegam pela mão de alguém e isso muda o modo como você os atravessa. Comecei devagar, meio cansada, meio perdida na rotina. Ia lendo quando dava, sem método, sem disciplina. Até que uma frase no início da obra me parou inteira.

“A escrita me deixa em profundo estado de desesperação, pois a letra não agarra tudo o que o corpo diz.”

Essa frase me desmontou não só porque é bela, mas porque é verdadeira de um jeito que dá vergonha. Ela captura algo que sempre me perseguiu: essa sensação de que escrever é tentar segurar água com as mãos. Sempre há um excesso que escapa, uma vibração que não se traduz, um pedaço de mundo interno que morre ao encostar no papel. Evaristo, porém, não trata esse ~fracasso como falha, ela o assume como método. Sua escrita acontece justamente no intervalo entre o que o corpo sente e o que a letra permite. É por isso que esse livro pulsa, ele não tenta domesticar o indizível; ele escreve a partir do que não cabe. O texto não quer caber na linguagem, quer vazar dela. E é nesse vazamento que a literatura vira corpo. Corpo ferido, corpo lembrante, corpo que sabe mais do que pode dizer. Tudo ali se sustenta nessa pulsação que não se resolve, nessa teimosia de escrever apesar do limite, nesse cansaço que também é coragem. E talvez seja por isso que, desde essa primeira frase, eu entendi que não estava apenas lendo um livro — estava entrando num organismo vivo.

E o que mais me fascina é que canção não é apenas a história de um homem morto: é a história das mulheres que sobreviveram a ele. Fio jasmim, esse “menino grande” impossível de carregar (nem pela mãe, nem pelas amantes, nem por si mesmo) existe menos como sujeito e mais como rastro. Ele é um buraco com forma de homem, moldado pela herança da masculinidade negra que aprendeu a engolir a própria fragilidade para performar força. Como lembra Wanderson Barbosa, no ensaio da missangas, fio não é uma falha individual, mas o produto histórico de uma repressão afetiva, da cobrança de virilidade, da expectativa cruel de que o homem negro seja sempre o corpo potente, nunca o corpo vulnerável. Isso não o absolve, mas o contextualiza: ele é sintoma de algo maior. Evaristo sabe disso. Ela escreve esse homem como se descrevesse um metal em fusão. Lindo, perigoso, impossível de segurar nas mãos sem se queimar.

Só que a grandeza do livro não está nele. Está nelas. Evaristo faz o que poucas narrativas ousam: entrega o protagonismo à constelação de mulheres que cercam Fio Jasmim, cada uma trazendo seu pedaço de dor, de amor, de luto, de ironia, de memória. quando li outras resenhas — como a da Jennifer Ernesto — entendi melhor essa força: Jennifer descreve essas vozes como “uma confraria de mulheres contando seus causos de amor por ele”, e não há imagem mais justa. É um coro, um mosaico, uma costura coletiva. É ali que a identidade de Fio realmente se forma, não porque elas falam dele, mas porque elas revelam o que a sociedade faz com homens como ele e, principalmente, o que esses homens fazem com mulheres como elas. É a memória feminina que sustenta a narrativa, mas também que desmonta o mito da passividade. Como lembram estudiosas do feminismo negro, essas mulheres não são vítimas imóveis: elas articulam amor, exigem espaço, negociam a própria dor como quem negocia território. Fazem escolhas difíceis, às vezes doloridas demais, mas ainda assim conscientes. Há poder nesses gestos, mesmo quando o amor é o próprio veneno.

28 de setembro de 2025

‘Amor’ de Clarice e o desconforto de existir

Clarice Lispector sempre me impressionou pelo dom raro de escrever o invisível. Ela tem essa capacidade quase mágica de transformar em palavras o que geralmente fica no silêncio, naquele espaço íntimo entre o sentir e o compreender. É como se ela abrisse uma fresta na alma humana e, de repente, aquilo que não sabíamos nomear ganhasse corpo, palavra, matéria. Ler Clarice é se ver desarmado diante de si mesmo: suas personagens revelam, com gestos mínimos e cotidianos, abismos internos que a gente reconhece, mesmo sem querer.

Ontem fui assistir a uma peça baseada no conto “Amor”, presente no livro Laços de Família, publicado em 1960. Eu já tinha lido o conto antes, mas a experiência do teatro foi completamente diferente. Quando li sozinha, achei a cena quase silenciosa, como se fosse apenas uma quebra sutil da rotina. No teatro, esse silêncio virou grito: a respiração da atriz, os gestos contidos, as pausas prolongadas, tudo transformava o invisível de Clarice em algo vivo, quase palpável. Era como se a vida de Ana se desfizesse diante de nós, desestabilizada por um encontro banal, mas revelador.

Ana é apresentada como uma mulher casada, mãe dedicada, alguém que construiu sua vida em torno da estabilidade e da previsibilidade. Tudo em sua rotina parecia calculado para manter o equilíbrio: os filhos, o marido, a casa, a ordem doméstica. Mas Clarice nos mostra como essa ordem pode se tornar, silenciosamente, uma prisão. O momento decisivo acontece quando, no bonde, Ana se depara com um cego mascando chiclete. Mas por que algo tão simples, um cego mascando chiclete, gerou tanto estranhamento nela? Não é que ele não possa, claro que pode, mas para Ana esse gesto banal rompe a lógica da vida “arrumada” que ela construíra. É um detalhe pequeno, quase imperceptível, mas que funciona como uma epifania: revela que a vida não cabe em caixinhas de ordem, que pequenos absurdos e gestos inesperados têm o poder de nos confrontar com a própria vulnerabilidade. A cena é devastadora justamente por isso: o encontro rompe o automatismo, abre um vazio, desperta uma angústia que Ana havia aprendido a calar.

É nesse instante que Clarice escreve: “Então ela viu: o cego mascava chiclete... Um homem cego mascava chiclete.” Encenada no palco, essa frase me atingiu profundamente, pois sintetiza o choque de Ana: o contraste entre a vida que parecia “arrumada” e aquilo que escapa ao controle. No conto, ela percebe que o mundo mudou: “O mundo se tornara de novo um mal-estar.” O inesperado revela, de forma quase cruel, tanto a intensidade quanto a fragilidade da existência. E não é exatamente isso que nos assusta e fascina ao mesmo tempo?

Ver essa cena no teatro me fez refletir sobre como muitas vezes o inesperado nos obriga a olhar para dentro. Quantas vezes seguimos no automático, repetindo gestos, vivendo papéis, sem perceber que estamos anestesiados? E quantas vezes basta um detalhe (um encontro casual, uma frase ouvida por acaso, um olhar estranho...) para que essa anestesia se rompa e a vida revele sua falta de garantias?

28 de agosto de 2025

Cigarros, uísques e a arte de existir

Reassisti Microhabitat (2017), um dos meus filmes favoritos, e fui tomada novamente pela intensidade silenciosa de Miso. Cada vez que vejo o filme, algo diferente surge. Hoje, me impressionou ainda mais a delicadeza com que ele expõe a solidão que acompanha quem insiste em viver fora das expectativas. Miso não está apenas abrindo mão de segurança financeira ou de conforto; ela está escolhendo, dia após dia, o que ama e o que lhe faz sentido, mesmo sabendo que isso custa caro.

A solidão dela é palpável. Ela circula por Seul, visita amigos que agora vivem vidas previsíveis e seguras, e sente, a cada encontro, a distância invisível que a separa deles. Todos seguiram o roteiro que a sociedade considera seguro: empregos estáveis, casamentos, apartamentos próprios. Miso, em contraste, insiste em seu próprio ritmo, seus próprios prazeres (fumar, beber, viajar, ser inteira) e isso a coloca à margem, visível e invisível ao mesmo tempo. A cidade, com seus prédios altos, ruas apressadas e espaços desenhados para caber apenas em certas vidas, torna-se quase um personagem, pressionando, julgando, desafiando cada gesto de resistência da protagonista.

O capitalismo, no filme, não é personificado como vilão; aparece como lógica silenciosa que organiza vidas, define prioridades e distribui valor de forma desigual. Miso se recusa a medir seu valor segundo essas regras. Cada pequeno gesto — acender um cigarro, abrir uma garrafa de uísque, sair sozinha para o que gosta — é uma afirmação de autonomia. Como ela mesma diz em um momento simples, quase resignado: “Eu só quero viver do meu jeito, com meus cigarros e meu uísque.” É impossível não perceber que, para cada um de nós, também existem nossos “cigarros e uísques”: pequenas escolhas, pequenos luxos que nos salvam, que nos lembram que ainda pertencemos a nós mesmos em meio à pressão de produzir, consumir e nos conformar.

O filme não romantiza essa escolha. A liberdade de Miso vem com um preço concreto: isolamento, julgamento, precariedade. Mas, ao mesmo tempo, há uma beleza silenciosa em cada gesto que ela preserva, em cada microhabitat que cria para si mesma, sejam apartamentos temporários, pequenas conversas, ou momentos de prazer simples que para muitos parecem supérfluos. São esses gestos que tornam sua resistência tão potente, porque eles afirmam que ainda é possível existir com dignidade, mesmo quando o mundo tenta nos empurrar para fora.

16 de agosto de 2025

A beleza escondida nos restos

A beleza não está no objeto em si, mas na forma como ele resiste. Fico pensando que há sempre algo que sobra, mesmo quando tudo parece ter se apagado. Esses restos, esses farelos de tempo, se recusam a desaparecer de vez. E talvez seja neles que a vida se agarra, meio teimosa, meio frágil. Há coisas que sobrevivem apesar do descuido, como uma planta que insiste em brotar na fresta de cimento, como a xícara lascada que não jogamos fora porque guarda um gesto antigo, um rastro de quem a segurou antes de nós.

Esses fragmentos carregam uma espécie de silêncio que não se dissolve. Não são grandes feitos nem lembranças heroicas, mas detalhes tão pequenos que quase se confundem com o nada. E, ainda assim, é desse nada que algo pulsa. Pedaços de instantes que não souberam desaparecer por completo, e talvez seja melhor assim, porque o desaparecimento total é insuportável. O que resiste, resiste porque ainda tem alguma coisa a dizer, mesmo que a gente não saiba ouvir de imediato.

Guardar bilhetes sem importância, fotos tremidas, cheiros que voltam de repente sem pedir licença. No fundo, não são as grandes memórias que nos sustentam, mas as bordas do vivido, o que escapou ao controle, o que não foi planejado. É como se o essencial estivesse sempre de lado, no que sobra, no que não se encaixa. Reconhecer esses restos é, de certo modo, reconhecer algo de nós mesmos que se recusa a sumir.

Há uma beleza nisso: não a do perfeito, mas a do que persiste. Uma beleza que se move junto com o tempo, que aceita estar gasta, que não pede para ser nova. Não precisa brilhar, apenas continuar respirando.

No fim, os restos nos lembram que nada se perde por inteiro. Mesmo quando acreditamos que sim, há sempre algo que fica, nem que seja no modo como passamos a olhar as coisas. Talvez a vida não seja sobre conquistar, acumular ou ter tudo inteiro, mas sobre aprender a escutar o que sobra.