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Quintal de Neblina

16 de agosto de 2025

A beleza escondida nos restos

A beleza não está no objeto em si, mas na forma como ele resiste. Fico pensando que há sempre algo que sobra, mesmo quando tudo parece ter se apagado. Esses restos, esses farelos de tempo, se recusam a desaparecer de vez. E talvez seja neles que a vida se agarra, meio teimosa, meio frágil. Há coisas que sobrevivem apesar do descuido, como uma planta que insiste em brotar na fresta de cimento, como a xícara lascada que não jogamos fora porque guarda um gesto antigo, um rastro de quem a segurou antes de nós.

Esses fragmentos carregam uma espécie de silêncio que não se dissolve. Não são grandes feitos nem lembranças heroicas, mas detalhes tão pequenos que quase se confundem com o nada. E, ainda assim, é desse nada que algo pulsa. Pedaços de instantes que não souberam desaparecer por completo, e talvez seja melhor assim, porque o desaparecimento total é insuportável. O que resiste, resiste porque ainda tem alguma coisa a dizer, mesmo que a gente não saiba ouvir de imediato.

Guardar bilhetes sem importância, fotos tremidas, cheiros que voltam de repente sem pedir licença. No fundo, não são as grandes memórias que nos sustentam, mas as bordas do vivido, o que escapou ao controle, o que não foi planejado. É como se o essencial estivesse sempre de lado, no que sobra, no que não se encaixa. Reconhecer esses restos é, de certo modo, reconhecer algo de nós mesmos que se recusa a sumir.

Há uma beleza nisso: não a do perfeito, mas a do que persiste. Uma beleza que se move junto com o tempo, que aceita estar gasta, que não pede para ser nova. Não precisa brilhar, apenas continuar respirando.

No fim, os restos nos lembram que nada se perde por inteiro. Mesmo quando acreditamos que sim, há sempre algo que fica, nem que seja no modo como passamos a olhar as coisas. Talvez a vida não seja sobre conquistar, acumular ou ter tudo inteiro, mas sobre aprender a escutar o que sobra.

E quando volto para eles, percebo que não estou apenas olhando objetos. Estou olhando pedaços de mim mesma. As coisas que resistiram me falam de tudo que não sei como nomear. Do amor que ficou sem fim, das conversas que não tivemos, das lágrimas que derramamos em silêncio. Cada fragmento é um diário secreto, um mapa do que fomos e do que ainda somos, mesmo que não saibamos explicar.

O que sobra é a única verdade que podemos tocar. O resto do que foi vivido, mesmo sem glamour, mesmo sem propósito aparente, continua ali, persistente. E há uma ternura profunda nisso: a vida insistindo em existir, mesmo nos pedaços que ninguém olha. Sorrio sozinha, com os restos espalhados pela mesa, pela gaveta, pela memória. Eles são imperfeitos, incompletos, às vezes inúteis. Mas são nossos.

Às vezes abro uma gaveta qualquer só para ouvir o silêncio dos restos. Um guardanapo rasgado, um papel amassado, um rastro de tinta seca. Fecho os olhos e consigo ouvir a risada da tarde em que aquele bilhete foi escrito, sentir a pressa de quem escreveu, o calor do sol que entrou pela janela. Cada fragmento é uma memória viva, mesmo que a lembrança esteja incompleta. Eles nos mostram que viver é sobreviver às próprias imperfeições, é se permitir ser quebrado e ainda assim continuar, é encontrar sentido no que não se encaixa.

A beleza escondida nos restos não é só do que sobrevive, mas do que insiste em existir em nós: nossas lembranças mal acabadas, nossos gestos que ninguém notou, nossos afetos que não tiveram palco. É nessa insistência, nesse modo silencioso de existir, que a vida encontra sua forma mais verdadeira, mais humana, mais íntima.

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