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Quintal de Neblina

28 de agosto de 2025

Cigarros, uísques e a arte de existir

Reassisti Microhabitat (2017), um dos meus filmes favoritos, e fui tomada novamente pela intensidade silenciosa de Miso. Cada vez que vejo o filme, algo diferente surge. Hoje, me impressionou ainda mais a delicadeza com que ele expõe a solidão que acompanha quem insiste em viver fora das expectativas. Miso não está apenas abrindo mão de segurança financeira ou de conforto; ela está escolhendo, dia após dia, o que ama e o que lhe faz sentido, mesmo sabendo que isso custa caro.

A solidão dela é palpável. Ela circula por Seul, visita amigos que agora vivem vidas previsíveis e seguras, e sente, a cada encontro, a distância invisível que a separa deles. Todos seguiram o roteiro que a sociedade considera seguro: empregos estáveis, casamentos, apartamentos próprios. Miso, em contraste, insiste em seu próprio ritmo, seus próprios prazeres (fumar, beber, viajar, ser inteira) e isso a coloca à margem, visível e invisível ao mesmo tempo. A cidade, com seus prédios altos, ruas apressadas e espaços desenhados para caber apenas em certas vidas, torna-se quase um personagem, pressionando, julgando, desafiando cada gesto de resistência da protagonista.

O capitalismo, no filme, não é personificado como vilão; aparece como lógica silenciosa que organiza vidas, define prioridades e distribui valor de forma desigual. Miso se recusa a medir seu valor segundo essas regras. Cada pequeno gesto — acender um cigarro, abrir uma garrafa de uísque, sair sozinha para o que gosta — é uma afirmação de autonomia. Como ela mesma diz em um momento simples, quase resignado: “Eu só quero viver do meu jeito, com meus cigarros e meu uísque.” É impossível não perceber que, para cada um de nós, também existem nossos “cigarros e uísques”: pequenas escolhas, pequenos luxos que nos salvam, que nos lembram que ainda pertencemos a nós mesmos em meio à pressão de produzir, consumir e nos conformar.

O filme não romantiza essa escolha. A liberdade de Miso vem com um preço concreto: isolamento, julgamento, precariedade. Mas, ao mesmo tempo, há uma beleza silenciosa em cada gesto que ela preserva, em cada microhabitat que cria para si mesma, sejam apartamentos temporários, pequenas conversas, ou momentos de prazer simples que para muitos parecem supérfluos. São esses gestos que tornam sua resistência tão potente, porque eles afirmam que ainda é possível existir com dignidade, mesmo quando o mundo tenta nos empurrar para fora.

Ao reassistir o filme, notei: quando o vi pela primeira vez, me identificava profundamente com Miso. Cada gesto dela, cada escolha, parecia espelhar algo meu, e eu me reconhecia em sua urgência e em sua coragem. Hoje, ainda que continue me identificando e sentindo seu impacto, alcança outro lugar dentro de mim. Não me vejo mais totalmente na personagem; agora, vejo a força de alguém que insiste em existir à sua maneira, e que, mesmo na solidão, cria beleza e resistência. É uma experiência mais madura, mais reflexiva. Reconheço nela algo que é universal, que fala para qualquer um que, em algum momento, precisou escolher entre a segurança e a autenticidade.

O filme também fala sobre amizade, passagem do tempo e escolhas que nos moldam. Cada visita de Miso aos amigos revela a transformação inevitável das pessoas, a distância que se cria entre quem se conforma e quem resiste. A solidão da protagonista, portanto, não é apenas pessoal; é social, atravessada pelas normas que invisivelmente determinam quem pode estar junto de quem, quem é digno de atenção, quem merece visibilidade. Mas é também nessa tensão que a beleza do filme se revela: mesmo marginal, Miso encontra formas de existir plenamente, de preservar o que é seu.

O relacionamento que Miso mantém, ou que um dia manteve, é revelador de uma forma sutil. Não é apenas um romance; é um reflexo da própria singularidade que ela carrega, uma extensão de sua autonomia e da solidão que a acompanha. A relação se desenrola fora do padrão esperado, livre de possessão e convenções, marcada por intensidade e, ao mesmo tempo, pela impossibilidade de se encaixar em regras rígidas. É nesse espaço delicado, feito de encontros e distâncias, que se percebe como escolhas afetivas e liberdade pessoal se entrelaçam, e como amar pode ser, simplesmente, um ato de viver plenamente.

E é impossível não sentir a cidade pulsando junto com a história dela. Seul não é apenas cenário; é pressa, indiferença, consumo, regras invisíveis. Cada rua que Miso atravessa parece pesar sobre suas escolhas, lembrando que o mundo exterior raramente acolhe a diferença. Mas, mesmo assim, ela continua a se mover, criar, existir, e é nesse movimento que reside a poesia do filme, a delicadeza da resistência silenciosa.

Em outro momento, Miso diz: “Não é que eu queira apenas fugir, é que não consigo viver do jeito que todo mundo diz que devo.” Essa frase ecoa muito além da tela: nos lembra que resistir, mesmo na margem, é uma forma de dignidade. Que nossos pequenos prazeres, nossos pequenos gestos de preservação, são também atos de insurgência silenciosa.

No final, Microhabitat não oferece soluções fáceis. Não há redenção material, não há final feliz convencional. Mas há coragem, há insistência, há autenticidade. O filme nos lembra que viver segundo nossos próprios termos, mesmo na margem, é uma forma de dignidade. E que, no fim, nossos pequenos “cigarros e uísques” — os gestos e prazeres que nos salvam — são também atos de insurgência, afirmações de que ainda podemos manter algo que nos pertence de verdade: nossa liberdade, nosso espaço, nossa própria vida.

E quando as luzes do filme se apagam, o que fica é uma sensação misturada de urgência e delicadeza: urgência porque confronta a brutalidade das pressões sociais; delicadeza porque nos lembra que, mesmo isolados, ainda é possível existir com beleza, intensidade e resistência. Microhabitat é um lembrete de que a autenticidade vale mais do que qualquer segurança ilusória, e que cada um de nós, à nossa maneira, pode reivindicar espaço, liberdade e coragem, mesmo quando o mundo insiste em nos empurrar para fora.

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