-->
Quintal de Neblina

28 de setembro de 2025

‘Amor’ de Clarice e o desconforto de existir

Clarice Lispector sempre me impressionou pelo dom raro de escrever o invisível. Ela tem essa capacidade quase mágica de transformar em palavras o que geralmente fica no silêncio, naquele espaço íntimo entre o sentir e o compreender. É como se ela abrisse uma fresta na alma humana e, de repente, aquilo que não sabíamos nomear ganhasse corpo, palavra, matéria. Ler Clarice é se ver desarmado diante de si mesmo: suas personagens revelam, com gestos mínimos e cotidianos, abismos internos que a gente reconhece, mesmo sem querer.

Ontem fui assistir a uma peça baseada no conto “Amor”, presente no livro Laços de Família, publicado em 1960. Eu já tinha lido o conto antes, mas a experiência do teatro foi completamente diferente. Quando li sozinha, achei a cena quase silenciosa, como se fosse apenas uma quebra sutil da rotina. No teatro, esse silêncio virou grito: a respiração da atriz, os gestos contidos, as pausas prolongadas, tudo transformava o invisível de Clarice em algo vivo, quase palpável. Era como se a vida de Ana se desfizesse diante de nós, desestabilizada por um encontro banal, mas revelador.

Ana é apresentada como uma mulher casada, mãe dedicada, alguém que construiu sua vida em torno da estabilidade e da previsibilidade. Tudo em sua rotina parecia calculado para manter o equilíbrio: os filhos, o marido, a casa, a ordem doméstica. Mas Clarice nos mostra como essa ordem pode se tornar, silenciosamente, uma prisão. O momento decisivo acontece quando, no bonde, Ana se depara com um cego mascando chiclete. Mas por que algo tão simples, um cego mascando chiclete, gerou tanto estranhamento nela? Não é que ele não possa, claro que pode, mas para Ana esse gesto banal rompe a lógica da vida “arrumada” que ela construíra. É um detalhe pequeno, quase imperceptível, mas que funciona como uma epifania: revela que a vida não cabe em caixinhas de ordem, que pequenos absurdos e gestos inesperados têm o poder de nos confrontar com a própria vulnerabilidade. A cena é devastadora justamente por isso: o encontro rompe o automatismo, abre um vazio, desperta uma angústia que Ana havia aprendido a calar.

É nesse instante que Clarice escreve: “Então ela viu: o cego mascava chiclete... Um homem cego mascava chiclete.” Encenada no palco, essa frase me atingiu profundamente, pois sintetiza o choque de Ana: o contraste entre a vida que parecia “arrumada” e aquilo que escapa ao controle. No conto, ela percebe que o mundo mudou: “O mundo se tornara de novo um mal-estar.” O inesperado revela, de forma quase cruel, tanto a intensidade quanto a fragilidade da existência. E não é exatamente isso que nos assusta e fascina ao mesmo tempo?

Ver essa cena no teatro me fez refletir sobre como muitas vezes o inesperado nos obriga a olhar para dentro. Quantas vezes seguimos no automático, repetindo gestos, vivendo papéis, sem perceber que estamos anestesiados? E quantas vezes basta um detalhe (um encontro casual, uma frase ouvida por acaso, um olhar estranho...) para que essa anestesia se rompa e a vida revele sua falta de garantias?

No caso de Ana, esse choque é profundamente marcado pela questão de gênero: ela poderia ser qualquer mulher da sua época (e, em muitos sentidos, de hoje também), alguém que aprendeu a se moldar em torno do lar e da família, mas que, em silêncio, sente que algo não se encaixa. A vida doméstica, apresentada como espaço de segurança, sempre foi também espaço de confinamento para as mulheres. Clarice parece denunciar esse aprisionamento silencioso, essa rotina que se confunde com destino, mas que sufoca a singularidade de quem a vive.

Em certo momento, a narrativa diz: “A vida é curta, mas larga.”. Ser larga não significa ser necessariamente plena, pode significar dispersão, excessos, demandas infinitas. Ana se dá conta disso quando o cotidiano, que parecia tão seguro, de repente se mostra vulnerável. E talvez essa seja uma das grandes provocações de Clarice: revelar que, por trás da ordem, há sempre um caos latejando.

Ao sair do teatro, fiquei com a sensação de que Clarice, pra variar, falava comigo em voz baixa, dizendo que não há garantias no viver — mesmo sabendo disso, como todos sabemos, continuamos buscando controle sobre tudo, tentando organizar cada detalhe, cada passo, como se isso pudesse nos proteger do inesperado. Mas a vida insiste em escapar, desafiando nossas rotinas, nossos planos e nossas certezas. A literatura e a peça me lembraram que não basta apenas estruturar a vida em torno de tarefas e papéis; é preciso permitir-se sentir, aceitar a vulnerabilidade, e reconhecer que o verdadeiro viver começa justamente quando nos permitimos lidar com a desordem e o desconforto que fazem parte da existência.

O que mais me marcou, então, foi perceber que “Amor” não fala só de Ana, nem só de mulheres da década de 1960, fala de qualquer pessoa que já se sentiu presa dentro da própria vida. O invisível que Clarice escreveu resiste, intacto, em nossos dias: o dilema entre ser aquilo que esperam de nós e ser aquilo que realmente sentimos. Ver essa história no palco me lembrou que, no fundo, todo mundo tem um “cego mascando chiclete” pronto para atravessar o nosso caminho e desarrumar certezas.

Talvez viver seja aceitar que a vida nunca cabe inteira em nossas tentativas de ordem. Na noite de ontem, no teatro, Clarice parecia sussurrar que a existência pulsa justamente onde não temos controle. E é nesse tropeço do cotidiano, quando o inesperado irrompe e quebra a rotina, que começamos a perceber a vida em sua intensidade mais completa, nos detalhes mínimos, nos gestos que antes passavam despercebidos, nas pequenas fissuras que revelam quem realmente somos. A literatura de Clarice e a encenação teatral vão além de contar histórias; elas nos oferecem espelhos silenciosos, nos confrontam com nossas certezas, nossas fragilidades e, acima de tudo, nos convidam a sentir de forma plena, a nos entregar ao risco e à vulnerabilidade que fazem parte do existir. E talvez seja nesse gesto de entrega, de abrir espaço para o inesperado, que resida a verdadeira liberdade.

Pra acrescentar à memória da noite: Ao final da peça, tocou uma música que repetia “I love you, yes, I do.” várias vezes, acompanhada de um piano suave e voz feminina. Era uma melodia incrivelmente gostosa e envolvente, mas, curiosamente, não consegui encontrá-la em lugar nenhum depois. Estou com ela na cabeça.

Nenhum comentário:

Postar um comentário