“Não cortaremos os pulsos, ao contrário, costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas.” Contexto da obra:
A frase aparece no livro A Disciplina do Amor (1980), de Lygia Fagundes Telles. O livro não é um romance tradicional, mas uma reunião de crônicas e memórias.
Publicado nos anos finais da Ditadura Militar, o fragmento reflete um período de feridas coletivas. A imagem de "costurar feridas" é tanto individual quanto um retrato de um país tentando se recompor.
Quando Lygia Fagundes Telles (♡) escreveu isso, ela não estava glorificando a dor; estava nomeando um gesto silencioso de permanência. Um movimento quase secreto, desses que a gente faz num canto do próprio peito quando percebe que seguir vivendo exige mais delicadeza do que força. A frase dela ilumina a coragem que não levanta bandeira nenhuma.
Costurar as próprias feridas é um trabalho que ninguém vê. Não tem final grandioso, não tem trilha sonora. É íntimo, humano, quase doméstico. Um gesto repetido no mundo inteiro por pessoas que, entre desabar e continuar, escolhem continuar, mesmo sem ter certeza de nada. Costurar com linha dupla não é performar resistência. É só reforçar o que quase se rompeu. É passar dois fios no mesmo buraco da agulha porque um só, você já sabe, não sustenta o peso de certos dias. Existe uma ternura enorme nisso: tocar a própria dor com as mãos trêmulas, mas ainda assim presentes, como quem cuida de algo frágil que também é seu.
E o detalhe mais exigente dessa metáfora é a proximidade. Ninguém costura de longe. É preciso olhar o rasgo, chegar perto, aceitar o incômodo de ver exatamente onde dói. É um trabalho que às vezes arde, às vezes cansa, às vezes expõe mais do que gostaríamos. Mesmo assim, é assim que se faz: ponto a ponto, sem pressa, sem esconder o que existe. Costurar não apaga cicatriz alguma. Não transforma a dor em lição de moral, não romantiza sofrimento. Costurar devolve a você o direito de ser dona da própria história. O verbo é que muda tudo: não romper, recompor.
E, nas entrelinhas, Lygia sussurra algo que quase ninguém diz:
você não precisa desaparecer para que a dor seja levada a sério.
você não precisa se ferir para justificar o peso que carrega.
você não precisa cair para merecer cuidado.
Talvez você só precise se recolher um pouco, juntar suas pontas soltas, costurar devagar. Às vezes, o fio enrosca, a agulha cai, o tecido repuxa. Nada disso é fracasso. Fechar ferida nunca foi um ato rápido, sempre foi um gesto paciente. Cada linha dupla que você coloca sobre si é quase um recado escrito sem tinta: eu estou aqui. Eu não me deixei para trás. É uma oração prática, feita com dedos e silêncio.
Há, ainda, algo que quase ninguém diz sobre costurar feridas: que dói ser tocada mesmo quando o toque é de cuidado. A gente fala muito do rasgo, mas pouco do depois — do momento em que você se senta com sua dor como quem senta com uma criança assustada. E, ao tentar costurar, percebe que não é só sobre fechar o corte, mas sobre reaprender a habitar o próprio corpo, o próprio nome, o próprio silêncio.
E é aí que a frase da Lygia ganha outra profundidade.
“Não cortaremos os pulsos, ao contrário, costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas.”
Aqui, a costura não é só reparo. É reconciliação. É quando você olha para algo que te feriu e, em vez de se vingar de si mesma, decide se acolher. A verdade é que existe um cansaço que não se resolve com descanso. Um tipo de dor que não pede pressa; pede honestidade. Pede que você admita: “eu não sei como seguir, mas eu sigo”. E isso, por si só, já é uma forma inteira de coragem.
Costurar também significa aceitar que algumas partes de você nunca mais serão como antes. E que ná há tragédia alguma nisso. A gente vai deixando de buscar a pessoa que já fomos e começa a cuidar da pessoa que se tornou. É uma troca delicada, quase ritualística: deixar o passado descansar e, enfim, pegar o próprio presente nos braços.
Outra coisa rara: costurar exige testemunhas gentis. Ninguém se remenda sozinha o tempo todo. Às vezes, a linha que lhe falta é a palavra de alguém que te enxerga. Às vezes, o ponto que você não sabe dar é a mão de quem te segura antes de você desabar. E isso não te torna fraca. Isso te torna humana.
E há ainda o tempo. O tempo que não tem pressa, que não se explica, que às vezes parece até cruel, mas que, silenciosamente, trabalha a nosso favor. Cicatrizes não fecham do dia pra noite, e talvez esteja tudo bem que seja assim. O que importa é que cada ponto, mesmo torto, diz algo como: “eu não desisti de mim”.
No fundo, aprofundar essa reflexão é perceber que costurar não é sobre voltar ao que era. É sobre se tornar algo mais inteiro do que antes. Porque a dor, quando não destrói, lapida. E a costura, quando não fecha, ensina.
O que Lygia realmente sugere é uma mudança de pacto:
entre se romper e se reinventar, escolha a reinvenção.
Entre abandonar o próprio corpo e reconquistá-lo, escolha o retorno.
Entre deixar a dor te definir e deixá-la apenas atravessar, escolha a travessia.
E que, quando você finalmente observar suas cicatrizes, perceba algo simples e, ao mesmo tempo, gigantesco: elas não são provas de fraqueza, mas mapas do caminho que você percorreu para continuar aqui. E continuar aqui — com todas as marcas, todos os fios, todos os pontos — é uma forma radical de existir. E de se amar.
E quando essa reflexão aprofunda, ela desce para um lugar que a gente guarda atrás do esterno, aquele espaço onde ficam as coisas que nunca contamos. É aí que Kierkegaard entra como quem abre uma fresta de luz. Ele disse:
“Se pudesse desejar algo para mim, não desejaria riqueza nem poder, mas a paixão da possibilidade; desejaria apenas um olho que, eternamente jovem, ardesse de desejo de ver a possibilidade.” A microbússola de Kierkegaard:
Essa frase, tirada de Der Augenblick (O Instante), reflete a obsessão do autor pela ideia de que a vida verdadeira não está no que já é, mas no que pode vir a ser. "Possibilidade" é a centelha que mantém a existência viva.
Curiosidade: O Instante foi um dos últimos textos dele, quase um panfleto filosófico onde ele insiste na subjetividade e no salto de fé. Por isso o desejo pelo "olhar eternamente jovem": sempre inflamado pelo que ainda pode acontecer.
A paixão da possibilidade. Há algo tão bonito nessa ideia. Como se mesmo remendada, mesmo cansada, você ainda pudesse olhar o mundo com esse olhar aceso, não para negar suas dores, mas para lembrar que existe futuro, existe chance, existe caminho. Costurar, no fim das contas, é isso: um pacto silencioso com a possibilidade. Não o retorno ao que você já foi, mas a abertura para o que ainda pode ser.
E talvez exista algo ainda mais fundo nessa história de costurar, algo que nem Lygia nem Kierkegaard dizem diretamente, mas que paira entre os dois como um fio invisível: a ideia de que viver é uma espécie de reconciliação contínua com o inacabado. A vida nunca fecha a última ferida, nunca encerra o último ponto, nunca se resolve completamente. Sempre existe um pedaço frouxo, um nó malfeito, uma borda que escapa do tecido.
E, curiosamente, é aí que reside a nossa humanidade.
A gente se acostuma a acreditar que o valor está no que ficou perfeito, mas talvez o valor verdadeiro esteja no que persiste. No que insiste, mesmo torto, mesmo tremendo, mesmo sem saber muito bem como continuar. Kierkegaard falava da “paixão da possibilidade”, mas existe também a paciência da continuidade — que é quando você percebe que não precisa arder todos os dias; às vezes basta continuar respirando.
Costurar com linha dupla também é isso: aceitar que a própria existência é feita de provisórios, de remendos que seguram até onde podem, de retomadas, de pausas, de quedas discretas e pequenos recomeços. E que, mesmo assim (ou justamente por isso) vale a pena.
Eu escrevo esse texto de mim para mim. Como quem se senta ao lado da própria alma e diz: “calma, eu estou tentando.” Mas, se você que lê encontrar alguma ternura entre essas linhas, alguma fagulha de coragem, algum respiro possível… então esse texto já cumpriu sua função. Porque cuidado, quando é verdadeiro, transborda naturalmente. Não precisa ser entregue, ele se oferece. Talvez seja esse o grande segredo da costura: o fio que conserta uma ferida sempre acaba tocando outra. Às vezes, toca até o que a gente nem sabia que doía. Que esse texto seja isso: um fio. Que te lembre, leitor, com delicadeza, que continuar também é uma forma de esperança. E que permanecer, do jeito que for, no ritmo que der, já é uma vitória íntima, silenciosa e profundamente humana.


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